Enquanto a música toca no rádio, fico pensando sobre o impacto que produz na cabecinha da molecada. Imagine o baixinho que ouve frases e canções do tipo:
Quando eu passava por você
Na minha CG você nem me olhava.
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber,
Mas nem me olhava.
Aí veio a herança do meu “véio”,
E resolveu os meus problemas, minha situação.
E do dia pra noite fiquei rico,
“To” na grife, “to” bonito, “to” andando igual patrão.
Agora eu fiquei doce igual caramelo;
“To” tirando onda de Camaro amarelo.
Agora você diz: vem cá que eu te quero;
Quando eu passo no Camaro amarelo.
E agora você vem, né?
Agora você quer.
Só que agora vou escolher,
“Tá” sobrando mulher.
Ou algo do tipo:
Não faz muito tempo,
Que eu andava a pé, não pegava nem gripe muito menos mulher
Só pegava poeira, não olhavam pra mim
Um dia eu decidi, eu vou sair daqui.
Quem não tem dinheiro é primo primeiro de um cachorro
O trem era tão feio que nem sobrava osso pra mim
Agora eu to mudado
O meu bolso tá cheio
Mulherada atrás
Eu quero ouvir cada vez Mais
Vem ni mim Dodge RAM
Focker duzentos e oitenta, a mulherada louca
Israel Novaes arrebenta!
Gosto é gosto, é verdade. E tem coisas piores que isso aí. Entretanto, alguns estudos psicológicos apontam que os valores culturais são reforçados pelas nossas relações sociais. E, obviamente, aquilo que a gente ouve ajuda a produzir crenças.
Músicas como essas, além de atropelarem a língua portuguesa, reproduzem o completo desprezo ao humano. Gente passa a ser medida pelo que tem. Gente passa a ser desejada pelo que possui.
Um pesquisador conhecido do século passado, o francês Pierre Bordieu, ao falar sobre a cultura, apontou que certas mensagens têm o poder de fixar valores, crenças. Ele ressalta que as imagens criadas pela sociedade fazem crer e ver. Exercem um poder mágico sobre as pessoas. Isto quer dizer que os atos individuais são movidos pela visão de mundo que adquirem.
É por isso que esse tipo de canção – entre outras mensagens midiáticas – me preocupa. O russo Vigotsky já dizia no início do século passado que a constituição psicológica do sujeito se dá de acordo com as condições sócio-históricas da sociedade. Então, se o garotinho cresce ouvindo que num determinado dia alguém pobre não é amado, ninguém gosta dele, mas no outro, quando passa a dirigir um carrão importado todo mundo lhe quer, todo mundo lhe deseja, que tipo de referência vai desenvolver?
Na Grécia antiga, um filósofo chamado Aristóteles defendia a tese de que a arte e a educação de um povo revelam quão grandiosa é uma nação.
Cá com meus botões, fico pensando: o que nossas músicas comerciais revelam sobre nós?
A cultura de um povo se mostra através do conjunto de valores que possui.Cultura não é ser culto. O que somos, o que gostamos revelam nossa cultura. Ou seja, se a gente acha que carro é sinônimo de sucesso com as mulheres, esta passa a ser a “verdade” de uma época, a “verdade” de um povo.
De alguma forma, a nossa consciência – entendida como nossa visão de mundo – é alimentada por esse tipo de discurso. E a molecadinha é alvo, ainda no desenvolvimento de seu psiquismo, desse tipo de mensagem. Uma mensagem que deturpa, inclusive, as relações afetivas. A garota não gosta do sujeito pelo que ele é. Gosta pelo carro que ele tem e tamanho da conta bancária.
Entretanto, outro russo, chamado Alexei Leontiv, aponta que o homem é o único dos animais que tem a capacidade e pode, intencionalmente, humanizar-se, transformar-se. Claro, não faz isso sozinho. Mas é capaz de desenvolver-se, inclusive do ponto de vista criativo.
Isto me faz lembrar, inclusive, de uma frase do Renato Russo. Ele dizia:
Tudo está perdido, mas existem possibilidades.
Ou, como também defendia Vigotsky, o homem é capaz de humanizar-se, mesmo em condições adversas.
Essas premissas me fazem acreditar que há espaço para o desenvolvimento de um outro tipo de sensibilidade. Uma sensibilidade que valorize o bem comum, que rompa com nosso ajeito apressado de ser, que nos reaproxime do que é belo, do que é pleno.
Porém, isso passa por uma transformação do nosso modelo de educação. Não dá, por exemplo, para proibir que mensagens que deturpam valores éticos sejam veiculadas no rádio e na televisão. Todavia, por meio da educação, podemos desenvolver nas pessoas a habilidade de interpretar o que significam determinadas mensagens. E, ao mesmo tempo, promover uma outra sensibilidade estética.
Uma sociedade devidamente educada tem maior consciência e, consequentemente, criticidade a ponto de libertar-se de valores tão rasos e de completa desvalorização do humano. E se é por meio da ação do próprio homem que se desenvolve a cultura, por que não romper com esse modelo, com essa formação empobrecida de uma sociedade de aparência e tão pouca ética? Pois é, depende de nós.